
O jardim dos caminhos que se bifurcam
João Pinharanda
Os bosques e florestas, tidos por lugares sagrados em todas as culturas e muito especialmente queridos nas mediterrânicas ou norte-europeias, podem, ainda assim, ser lugares diversos: de pacificação e bondade ou de estranhamento e medo. Fontes benignas, sombras acolhedoras, clareiras iluminadas, delicadas melodias dos pássaros ou de seres mágicos carregados de um erotismo feliz, intrincadas massas vegetais de difícil penetração, fragas cortantes, negrumes onde se aninham animais ferozes, ventos gelados e corpos em perigo são imagens mentais de uma dualidade simbólica, que é também geográfica e física, e que separa o clima ameno do clima agreste, a noite do dia, o encantamento da maldição. Lugares de prazer ou de sofrimentos, modelos práticos de uma Arcádia ou de uma Cítia míticas.
Estas fotografias de Valter Vinagre são captadas em bosques e florestas de um Portugal que os geógrafos dividem entre uma dimensão atlântica e outra mediterrânica e que uma certa antropologia empírica situa entre a herança celta e a germânica, a herança clássica e a muçulmana. Mas não há memória de fadas ou de elfos em nenhum destes lugares: o imaginário popular e a reelaboração erudita que dele faz a literatura ocupam-nos antes de bruxas e de mouras encantadas, cavaleiros caçadores e damas pé-de-cabra, pastores melancólicos e pastoras, umas esquivas, outras jocosas.
Porém, os bosques destas fotografias parecem situar-nos numa outra realidade, bem diversa do lirismo ou bucolismo que descrevemos. Se quisermos manter a metáfora do jardim mítico teremos que perceber que estes não são jardins paradisíacos e também não lugares infernais – são, simplesmente, espaços devastados, longe de todas as possibilidades de sagração ou maldição. Neles, onde nenhuma “cabana para pensar” poderá ser construída, abrem-se novos entendimentos antropológicos da realidade natural, afastando-nos da relação tradicional do humano e do sobrenatural com o natural. Estamos perante lugares naturais com vestígios de ocupação; e, porque nenhuma figura neles se apresenta, poderia ainda manter-se a hipótese de serem lugares habitados por entidades mágicas que se escondem à presença de um olhar humano. Mas rapidamente se percebe que essa ausência se deve ao facto de estarmos perante cenários de acontecimentos cujo grau de degradação tornaria impossível a um olhar humano sustentar o juízo de outro olhar humano. Estamos em lugares devastados – não por uma catástrofe natural (um fogo, um temporal, uma inundação) ou sequer humana (momentos de guerra ou puro vandalismo); a devastação surge na degradação das próprias coisas e materiais que compõem esses cenários. Cada coisa parece não pertencer ao espaço onde se situa e parece cumprir o papel que lhe é atribuído não a partir de um sentido de utilidade e adequação à função, mas arrastando o significado do espaço onde se inscreve e o da sua função original para um abismo.
As árvores suportam panejamentos que resguardam e enquadram acontecimentos nunca registados, os coxins e as mantas esperam corpos que neles deixaram o rasto penoso de uma passagem – o que poderia ser a cenografia de uma composição teatral, balética, pictórica, fotográfica ou poética é apenas o lugar, provisoriamente abandonado, de uma ignomínia. Um sem-número de outras coisas e materiais espalha-se no espaço, sobre a caruma e a terra, sobre os estofos e os panos, apresentando-se não como fragmentos de uma realidade explodida mas como detritos dessa realidade, como lixo – o branco dos papéis amarrotados, em vez de ser uma pontuação de luz, é o sinal maior dessa realidade maculada.
A iluminação de palco criada por Valter Vinagre para o registo de cada cenário acentua a diferença entre o modo como se olha uma realidade e o modo como se vive nessa realidade – e era essa a intenção do fotógrafo: mostrar o reverso das lendas e dos encantos naturais dos bosques e florestas; falar de uma natureza desnaturalizada e desnaturada de onde os provisórios habitantes se obrigam a fugir não por razões mágicas mas por medo social, onde não há torres de marfim mas poços escuros, onde as princesas (cristãs, mouras, negras) são prisioneiras de uma cadeia social (a da emigração clandestina e da prostituição) e não de um bruxedo, onde não há cavaleiros que as salvem mas proxenetas e clientes (eles mesmo em perda) que as atiram ainda mais para o fundo, onde a beleza das damas durará pouco ou há muito se fanou, substituída pela doença ou pela deformidade, onde o medo, a cupidez, o ódio, a vingança ganharam lugar à doçura no olhar de cada uma.
É tudo isto que (não) se vê nas fotos de Valter Vinagre. Quanto mais preciosamente compostas (como se pode tirar/encontrar beleza nas composições destes presépios de miséria?), quanto mais delicadamente iluminadas (como se pode desenhar com uma luz tão pictural a volumetria de um espaço tão real?), quanto mais esteticamente pensadas (como se pode mostrar sem raiva um cenário de inferno e nojo?), tanto mais o fotógrafo nos ensina a ver a miséria que transportam. Não se trata de escolhermos entre caminhos que sucessivamente se bifurquem: temos que escolher os dois caminhos: o da fotografia como prática autónoma; e o da fotografia como discurso de denúncia – ambos nos servem para ver estes trabalhos.
Lisboa, 25 Março 2015
João Pinharanda