
A vida na morte
Sérgio B. Gomes e Valter Vinagre
A vida na morte
Há fotógrafos que teimam em trilhar os caminhos menos óbvios, mais espinhosos. Que gostam da provocação, da sugestão, da ironia e de alguma matreirice, sem que isso se pareça em nada com joguinhos florais ou ziguezagues barrocos – não é dar curva só para ver se a máquina aguenta, é dar a curva pelo prazer de derrapar, de andar no limite e de ver a poeira a levantar. Valter Vinagre é um destes fotógrafos. Pediram-lhe o sopro da vida e ele deu-lhes a boca escancarada da morte. Pediram-lhe o pulsar das coisas naturais e ele deu-lhes os olhos vítreos e a língua empastada de verniz. Pediram-lhe a celebração da dinâmica imparável da diversidade biológica e ele deu-lhes a monotonia taxidérmica que tenta ferir o tempo, estancando-o numa expressão terrífica, num corpo que não passa de uma cápsula de nada.
A série Animais de Estimação ganhou forma (e vida!) por causa de um convite ao colectivo [kameraphoto] para participar na iniciativa E.C0 2010 que reuniu em Madrid fotografias de vinte colectivos da Europa e da América do Sul. E, sim, no meio de todas as outras imagens de natureza viva eram estas imagens de natureza morta e teatral que mais poderosamente nos remetiam para uma ideia ampla de natureza em toda a sua infinitude e complexividade.
Há fotógrafos assim – que não têm emenda. Para nosso bem.
Sérgio B. Gomes a propósito de Animais de Estimação. Maio 2010.
Resumo de uma conversa entre Valter Vinagre e Sérgio B. Gomes a propósito de “Animais de Estimação”
Qual era o desafio de partida?
Era fotografar alguma coisa relacionada com Biodiversidade em Portugal. Foram convidados colectivos de vários países da Europa e da América Latina.
Como é que te lembraste desta “fauna” que ainda sobrevive em muitas casas portuguesas?
Nunca tenho bem a noção de quando é que a ideia para um trabalho mais alargado surge. Durante a realização deste projecto tentei recordar-me do momento em que o assunto se atravessou à minha frente e me fez pensar, mas não consegui isolá-lo. O tema da morte, dos “cães danados”, de uma certa noção de ruína tem-me acompanhado… Quis registar a teimosia humana, a necessidade que temos de tentar perpectuar memórias, neste caso memórias naturais em extinção.
Quando nos chegou este desafio e se começou a discutir, na Kameraphoto, o que é que se ia fazer, lembrei-me logo dos animais embalsamados que muitas vezes aparecem expostos nos cafés. E fui, também, à procura deles espaços mais privados. Para o conjunto de 12 imagens,(neste momento a série tem 13) que apresento, acabei por seleccionar apenas uma das captadas em cafés. As restantes, foram tiradas em espaços privados.
Não deixa de ser interessante reconhecer que o conjunto pode ser lido também como a antítese da biodiversidade, se entendermos o termo na sua noção mais restrita, ou seja, como o conjunto de todas as espécies e seres vivos nos seus ecossistemas…
Agrada-me esse contra-pé com o tema proposto. Há também alguma ironia no título da série, animais de estimação, tendo em conta que estes animais eram selvagens e acabam por ser domesticados depois de mortos, tornaram-se queridos das pessoas e como tal foram embalsamados e não destruídos. Em alguns casos, eram animais domésticos cujos donos os quiseram perpetuar desta forma.
Outra coisa extraordinária é que esta actividade pode ajudar a limitar ainda mais a biodiversidade, tendo em conta a procura de animais exóticos e raros para embalsamar…
Sim, é verdade. Mas há um dado curioso: esta actividade tornou-se cada vez mais rara por causa de uma lei que a enquadrava e que levantou o boato de que era proibido ter em casa animais embalsamados em perigo de extinção, o que fez com que muita gente deitasse fora esses animais e que a actividade acabasse também por sofrer… Ironicamente, isto significa que alguns animais embalsamados podem ser duplamente raros. Há poucos embalsamamentos bem executados. E maior parte dos que existem estão nos museus.
Há também uma mensagem que é: atenção porque qualquer dia para ver uma determinada espécie só desta maneira…
Sim. Há um lado do trabalho que pode funcionar como alerta.
O conjunto dá um ambiente assustador, a fazer lembrar filmes de classe Z. Apesar de “domesticados” estes animais têm um ar tenebroso, agressivo. O flash sublinha esse aspecto e parece que os apanhaste em flagrante no seu meio natural…
É uma maneira de sublinhar ainda mais a ilusão de vida que se pretende criar com o embalsamamento. Por outro lado, ao dar parte do cenário onde estão arrumados, remeto para o seu lado doméstico e… definitivamente domesticado. São usados como bibelots.
O tema é biodiversidade, mas este trabalho é mais sobre a morte do que sobre a vida…
É mais sobre a morte, nitidamente. Não quis ir pelo lado do troféu de caça, mas mais pelo apego que as pessoas demonstraram ter por estes objectos que antes de serem bibelots foram animais vivos.